Livros Deuterocanônicos: A História, a Teologia e a Relevância dos “Outros Livros” da Bíblia

Tempo de leitura: 10 min

em junho 8, 2025

Livros Deuterocanônicos: A História, a Teologia e a Relevância dos “Outros Livros” da Bíblia

Quando alguém abre uma Bíblia católica e depois consulta uma edição protestante ou judaica, percebe rapidamente que há livros “a mais” em uma e “faltando” na outra. Esses escritos extras são chamados de livros deuterocanônicos ― termo que, em grego, significa “pertencentes ao segundo cânon”.

Neste artigo, vamos explorar a origem, a lista completa, o contexto histórico, as discussões teológicas e a influência cultural desses textos que continuam a instigar estudiosos, fiéis e curiosos.

O que são os livros deuterocanônicos?

O adjetivo “deuterocanônico” provém do grego deutero (segundo) + kanón (regra, medida).

Foi cunhado no século XVI pelo cardeal Sisto de Siena para designar os escritos que não estavam no cânon hebraico definitivo (o Tanakh), mas que eram lidos na Igreja desde os primeiros séculos e, posteriormente, ratificados no Concílio de Trento (1546).

Assim, os livros deuterocanônicos integram o Antigo Testamento católico, mas não aparecem nas Bíblias protestantes nem no canon judaico rabínico.

Lista dos livros deuterocanônicos

Embora haja pequenas variações nas edições católicas e ortodoxas, a lista tradicional engloba:

  1. Tobias (ou Tobite)

  2. Judite

  3. Sabedoria (ou Sabedoria de Salomão)

  4. Eclesiástico (ou Sirácida)

  5. Baruc

  6. 1 Macabeus

  7. 2 Macabeus

  8. A completação grega de Ester (capítulos ou versículos adicionais)

  9. As adições gregas a DanielCântico dos Três Jovens, Susana e Bel e o Dragão

Na Igreja Ortodoxa há outros textos considerados “anagignoscomenos” (deuterocanônicos para eles), como 3 Macabeus, 4 Macabeus, 1 Esdras, Oração de Manassés e Salmo 151.

A gênese histórica dos livros deuterocanônicos

A maioria foi escrita originalmente em hebraico ou aramaico entre os séculos III a.C. e I a.C., durante o chamado Período Intertestamentário.

Contudo, circularam principalmente em traduções gregas, pois a língua franca do Mediterrâneo oriental era o grego koiné. Isso explica por que aparecem na Septuaginta (LXX), a tradução da Bíblia hebraica realizada em Alexandria.

Quando os rabinos definiram seu cânon em Yavne, por volta de 90 d.C., optaram pelos textos em hebraico então disponíveis, deixando de fora escritos conhecidos apenas em grego; daí a exclusão dos deuterocanônicos no cânon judaico.

O papel da Septuaginta e a aceitação patrística

A Septuaginta não foi apenas uma tradução: tornou-se a Bíblia oficial das sinagogas da Diáspora e, mais tarde, da Igreja nascente.

Pais da Igreja como Irineu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio e Agostinho a citavam abundantemente, incluindo os livros deuterocanônicos.

Essa ampla circulação patrística foi decisiva para a sua inclusão quando a Igreja Latina definiu o cânon em seus concílios regionais (Hipona 393, Cartago 397 e 419) e, finalmente, no Concílio de Trento.

Controvérsias da Reforma e definição católica

Martinho Lutero, ao traduzir a Bíblia para o alemão (1534), optou por organizar os deuterocanônicos em apêndice chamado Apócrifos. Ele os considerava edificantes, porém “inferiores” às Escrituras protocanônicas.

Essa atitude influenciou as tradições luterana e reformada a excluí-los de suas edições. Em resposta, o Concílio de Trento reafirmou solenemente a canonicidade integral desses livros, usando o termo “deuterocanônico” para diferenciá-los dos “protocanônicos” (os livros jamais questionados).

Temas centrais presentes nos livros deuterocanônicos

  • Providência e fidelidade divina — Tobias e Judite mostram Deus intervindo em histórias familiares e políticas.

  • Sabedoria intertestamentária — Sabedoria e Eclesiástico aproximam a tradição judaica da filosofia helenística, antecipando temas cristológicos (Sab 2,12-20).

  • Resistência e mártirio — 1 e 2 Macabeus relatam a revolta dos irmãos Macabeus contra Antíoco IV Epifânio, oferecendo o primeiro testemunho bíblico sobre a ressurreição dos mortos (2 Mac 7).

  • Exortação à penitência — Baruc enfatiza conversão após o exílio e contém a célebre oração de Jerusalém (Bar 3).

  • Esperança escatológica — As adições a Daniel reforçam a confiança durante a perseguição, símbolos que ecoam no Apocalipse de João.

Contribuições teológicas decisivas

  1. Imortalidade da alma e ressurreição — Sabedoria 3 e 2 Macabeus 7 dão base às discussões neotestamentárias sobre vida após a morte.

  2. Intercessão dos santos — 2 Macabeus 15 fala de Onias e Jeremias intercedendo, inspirando a teologia católica sobre comunhão dos santos.

  3. Oração pelos mortos — 2 Macabeus 12,38-45 sustenta a doutrina do Purgatório e a prática de sufrágios.

  4. Doutrina da Sophia — Sabedoria personifica a Sabedoria divina, preparando o conceito do Logos em João 1.

  5. Virtudes e ética — Eclesiástico é tratado como manual de moral prática, muito citado por doutores medievais.

Diferença entre livros deuterocanônicos e apócrifos

É comum confundir ambos: livros apócrifos (do grego “ocultos”) são textos que nunca receberam aceitação canônica universal, como o Evangelho de Tomé ou a Ascensão de Isaías.

Já os livros deuterocanônicos fazem parte do cânon católico e ortodoxo, possuindo uso litúrgico oficial. Em suma, todo deuterocanônico é canônico para essas tradições, enquanto apócrifo é sempre extracânon.

Manifestações litúrgicas e devoção popular

Na liturgia católica, textos de Sabedoria, Baruc e Eclesiástico figuram em missas dominicais, e passagens de Judite aparecem em festas marianas (por sua heroína ser vista como tipo de Maria).

Os mártires macabeus são venerados como santos no calendário romano (1º de agosto). Cantos baseados em Tobite, como Bendito Sejas para Sempre, são populares em casamentos católicos, pois o livro descreve o matrimônio de Tobias e Sara sob a benção celestial.

Influência artística e cultural

  • Arte Renascentista: Pintores como Caravaggio (“Judite e Holofernes”) e Rembrandt (“Bel e o Dragão”) retrataram cenas desses livros.

  • Literatura Moderna: T.S. Eliot cita Sabedoria e Eclesiástico em seus poemas; Machado de Assis usa alusões a Tobias.

  • Cinema: O épico “Os Macabeus” (1962) e o moderno “Silêncio” de Scorsese (que alude ao Intertestamento) repercutem temas deuterocanônicos.

  • Música: Oratórios barrocos sobre Judite, bem como motetos de Eclesiástico nas Vésperas de Monteverdi, amplificam sua espiritualidade.

Autenticidade textual e descobertas arqueológicas

Por séculos acreditou-se que livros como Sabedoria existiam somente em grego, mas fragmentos hebraicos de Sirácida foram encontrados em Massada e no Cairo Genizah.

Já manuscritos aramaicos de Tobite e hebraicos de Eclesiástico foram achados em Qumran (Pergaminhos do Mar Morto), reforçando a antiguidade judaica desses escritos.

Argumentos protestantes contrários

  • Ausência no cânon hebraico tradicional (Tanakh).

  • Alguns anacronismos históricos aparentes (por exemplo, Judite menciona Nabucodonosor como rei dos assírios).

  • Doutrinas vistas como problemáticas, como oração pelos mortos (considerada sem base no Novo Testamento por reformadores).

Todavia, estudiosos protestantes atuais reavaliam seu valor histórico e literário, recomendando-os como “leitura proveitosa”, embora sem autoridade doutrinal.

Perspectiva católica e ortodoxa a favor

  • Uso constante na liturgia desde o século II.

  • Citações indiretas no Novo Testamento, sugerindo familiaridade dos autores sagrados (Hb 11,35 ecoa 2 Mac 7).

  • Tradição viva como critério de cânon: a Igreja, guiada pelo Espírito, reconhece nesses escritos a Palavra de Deus.

Paralelos e influência sobre o Novo Testamento

Tema nos Deuterocanônicos Passagem Eco no Novo Testamento
Ressurreição dos mártires 2 Mac 7 Hb 11,35 / Mt 22,29-32
Justiça da viúva corajosa Judite 9 Lc 18,1-8 (parábola da viúva)
Sabedoria pré-existente Sab 7-9 Jo 1 (Logos), Cl 1,15-17
Alianças angelicais no matrimônio Tob 12 Mt 18,10 (anjos dos pequeninos)
Oração pelos mortos 2 Mac 12 1 Cor 15,29 (batismo pelos mortos?)

Importância acadêmica contemporânea

Universidades como Oxford, Louvain e Jerusalém oferecem cursos específicos sobre livros deuterocanônicos para entender:

  • a transição do Judaísmo do Segundo Templo;

  • a teologia da sabedoria helenística;

  • a formação da escatologia judaico-cristã.

Pesquisas interdisciplinares combinam filologia, arqueologia e teologia comparada, abrindo novas interpretações sobre a diversidade do pensamento bíblico.

Estratégias de estudo para leigos

  1. Ler a Septuaginta em edições interlineares para sentir nuances gregas.

  2. Comparar passagens paralelas (ex.: Tb 4 x Mt 7,12 sobre a regra de ouro).

  3. Usar comentários patrísticos: Agostinho, Jerônimo, Orígenes.

  4. Participar de grupos de leitura ecumênica, enriquecendo a visão multiconfessional.

  5. Aplicar princípios de Lectio Divina, transformando a leitura acadêmica em experiência espiritual.

Curiosidades pouco conhecidas

  • Alguns monges medievais copiavam apenas Sirácida como manual de aconselhamento monástico.

  • A igreja de Santa Sabina, em Roma, traz esculturas de Judite libertando Israel ― símbolo de Maria libertando a humanidade.

  • Na liturgia etíope há 1 Macabeus dividido em 70 capítulos, evidenciando tradições textuais próprias.

Desafios de tradução nos livros deuterocanônicos

Passagens de Sirácida apresentam paralelismos poéticos que se perdem em versões modernas; já Sabedoria mistura prosa e poesia sapiencial.

Tradutores precisam equilibrar fidelidade literal e beleza literária, pois linguagem afetiva desses livros aproxima-se dos Salmos.

Os deuterocanônicos na formação da doutrina social

  • Justiça e pobreza: Eclo 34-35 denuncia exploração dos necessitados, ecoando depois em Tiago 5.

  • Fraternidade universal: Sab 12 ensina tolerância divina às nações.

  • Responsabilidade política: 1 Macabeus mostra resistência à tirania, inspirando leitura cristã da liberdade de consciência.

“A voz dos sem voz”: a mensagem ética de Judite

Judite, uma viúva marginalizada, torna-se heroína nacional. O livro ressalta empoderamento feminino, coragem e fé estratégica. Em contextos atuais, inspira movimentos por justiça social e igualdade de gênero.

Resgate da espiritualidade laical em Tobias

A peregrinação de Tobias e o casamento com Sara ilustram a santidade da vida diária: trabalho, família, cuidado com os pais.

Essa espiritualidade ordinária é redescoberta por teólogos contemporâneos, mostrando que os livros deuterocanônicos não são apenas peças históricas, mas guias para a vida cristã moderna.

Conexões inter-religiosas

Estudiosos judeus reconhecem valor histórico de 1 Macabeus como fonte principal da festa de Hanucá. Cristãos, por sua vez, encontram ali ponte para compreender Jesus em João 10,22 (Festa da Dedicação). Assim, esses livros se tornam terreno fértil para o diálogo judaico-cristão.

Aplicações pastorais atuais

  • Catequese: explicar oração pelos defuntos a partir de 2 Macabeus.

  • Direção espiritual: usar Eclesiástico como fonte de provérbios práticos.

  • Liturgia da Palavra: propor leituras opcionais nas celebrações ecumênicas.

  • Formação bíblica: oferecer cursos sobre História do Cânon incluindo os deuterocanônicos.

Críticas acadêmicas e respostas apologéticas

Alguns argumentam que 2 Macabeus exagera cifras bélicas; arqueologia mostra números menores. Contudo, a intenção do autor era teológica, não cronística.

Outros questionam a ficção histórica de Judite; a resposta católica sustenta que gênero literário não invalida verdade teológica.

Conclusão — Por que estudar os livros deuterocanônicos hoje?

Os livros deuterocanônicos preenchem lacuna crucial entre o Antigo e o Novo Testamento, revelando evolução da teologia judaica e preparando conceitos centrais do cristianismo.

Seu conteúdo literário, ético e doutrinal enriquece a fé, a arte e o diálogo inter-religioso. Redescobri-los significa reconectar-se a uma herança espiritual plural e profunda, capaz de iluminar desafios contemporâneos, desde questões de justiça social até debates sobre vida após a morte.

Ao incorporar esses textos em seu estudo, oração e prática, o leitor se aproxima de uma compreensão mais ampla da Bíblia como um todo, reconhecendo que a revelação divina manifesta-se também nesses “outros livros” ― livros que, apesar de um “segundo” cânon, jamais deixaram de falar em primeiro lugar ao coração humano.

Leia, reflita e permita que a riqueza dos livros deuterocanônicos amplie sua visão de fé e história.

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